MENSAGEM DO SANTO PADRE FRANCISCO PARA A CELEBRAÇÃO DO 48º DIA
MUNDIAL DA PAZ, 1º DE JANEIRO DE 2014
FRATERNIDADE, FUNDAMENTO E CAMINHO PARA A PAZ
Nesta minha primeira Mensagem para o Dia Mundial da
Paz, desejo formular a todos, indivíduos e povos, votos duma vida repleta de
alegria e esperança. Com efeito, no coração de cada homem e mulher, habita o
anseio duma vida plena que contém uma aspiração irreprimível de fraternidade,
impelindo à comunhão com os outros, em quem não encontramos inimigos ou concorrentes,
mas irmãos que devemos acolher e abraçar.
Na realidade, a fraternidade é uma dimensão
essencial do homem, sendo ele um ser relacional. ... E convém desde já lembrar
que a fraternidade se começa a aprender habitualmente no seio da família, graças
sobretudo às funções responsáveis e complementares de todos os seus membros,
mormente do pai e da mãe. A família é a fonte de toda a fraternidade, sendo
por isso mesmo também o fundamento e o caminho primário para a paz, já que, por
vocação, deveria contagiar o mundo com o seu amor.
«Onde está o teu
irmão?» (Gn 4, 9)
Segundo a narração das origens, todos os homens
provêm dos mesmos pais, de Adão e Eva, casal criado por Deus à sua imagem e
semelhança (cf. Gn 1, 26), do qual nascem Caim e Abel. Na história desta primeira
família, lemos a origem da sociedade, a evolução das relações entre as pessoas
e os povos.
Abel é pastor, Caim agricultor. A sua identidade
profunda e, conjuntamente, a sua vocação é ser irmãos, embora na diversidade da
sua atividade e cultura, da sua maneira de se relacionarem com Deus e com a
criação. Mas o assassinato de Abel por Caim atesta, tragicamente, a rejeição
radical da vocação a ser irmãos...
A narração de Caim e Abel ensina que a humanidade
traz inscrita em si mesma uma vocação à fraternidade, mas também a
possibilidade dramática da sua traição. Disso mesmo dá testemunho o egoísmo
diário, que está na base de muitas guerras e injustiças: na realidade, muitos
homens e mulheres morrem pela mão de irmãos e irmãs que não sabem reconhecer-se
como tais, isto é, como seres feitos para a reciprocidade, a comunhão e a
doação.
«E vós sois todos
irmãos» (Mt 23, 8)
Surge espontaneamente a pergunta: poderão um dia os
homens e as mulheres deste mundo corresponder plenamente ao anseio de
fraternidade, gravado neles por Deus Pai? Conseguirão, meramente com as suas
forças, vencer a indiferença, o egoísmo e o ódio, aceitar as legítimas
diferenças que caracterizam os irmãos e as irmãs?
Parafraseando as palavras do Senhor Jesus, poderemos
sintetizar assim a resposta que Ele nos dá: dado que há um só Pai, que é Deus,
vós sois todos irmãos (cf. Mt 23, 8-9). A raiz da fraternidade está contida na
paternidade de Deus. ...Em particular, a fraternidade humana foi regenerada em
e por Jesus Cristo, com a sua morte e ressurreição... Na família de Deus, onde
todos são filhos dum mesmo Pai e, porque enxertados em Cristo, filhos no Filho,
não há «vidas descartáveis». Todos gozam de igual e inviolável dignidade; todos
são amados por Deus, todos foram resgatados pelo sangue de Cristo, que morreu
na cruz e ressuscitou por cada um. Esta é a razão pela qual não se pode ficar
indiferente perante a sorte dos irmãos.
A fraternidade,
fundamento e caminho para a paz
As Encíclicas sociais dos meus Predecessores
oferecem uma ajuda valiosa neste sentido. Basta ver as definições de paz da
Populorum progressio, de Paulo VI, ou da Sollicitudo rei socialis, de João
Paulo II. Da primeira, apreendemos que o desenvolvimento integral dos povos é o
novo nome da paz e, da segunda, que a paz é fruto da solidariedade.
Paulo VI afirma que tanto as pessoas como as nações
se devem encontrar num espírito de fraternidade. E explica: «Nesta compreensão
e amizade mútuas, nesta comunhão sagrada, devemos (…) trabalhar juntos para
construir o futuro comum da humanidade». Este dever recai primariamente sobre
os mais favorecidos. Ora, da mesma forma que se considera a paz como fruto da
solidariedade, é impossível não pensar que o seu fundamento principal seja a
fraternidade. A paz, afirma João Paulo II, é um bem indivisível: ou é bem de
todos, ou não o é de ninguém. Na realidade, a paz só pode ser conquistada e
usufruída como melhor qualidade de vida e como desenvolvimento mais humano e
sustentável, se estiver viva, em todos, «a determinação firme e perseverante de
se empenhar pelo bem comum». Isto implica não deixar-se guiar pela «avidez do
lucro» e pela «sede do poder».
A solidariedade cristã pressupõe que o próximo seja
amado não só como «um ser humano com os seus direitos e a sua igualdade
fundamental em relação a todos os demais, mas [como] a imagem viva de Deus Pai,
resgatada pelo sangue de Jesus Cristo e tornada objeto da ação permanente do
Espírito Santo», como um irmão.
A fraternidade,
premissa para vencer a pobreza
Na Caritas in veritate, o meu Predecessor lembrava
ao mundo que uma causa importante da pobreza é a falta de fraternidade entre os
povos e entre os homens... Uma tal pobreza só pode ser superada através da
redescoberta e valorização de relações fraternas no seio das famílias e das
comunidades, através da partilha das alegrias e tristezas, das dificuldades e
sucessos presentes na vida das pessoas.
Reconhece-se haver necessidade também de políticas
que sirvam para atenuar a excessiva desigualdade de rendimento. Não devemos
esquecer o ensinamento da Igreja sobre a chamada hipoteca social, segundo a
qual, se é lícito – como diz São Tomás de Aquino – e mesmo necessário que «o
homem tenha a propriedade dos bens», quanto ao uso, porém, «não deve considerar
as coisas exteriores que legitimamente possui só como próprias, mas também como
comuns, no sentido de que possam beneficiar não só a si mas também aos outros».
Por último, há uma forma de promover a fraternidade
– e, assim, vencer a pobreza – que deve estar na base de todas as outras. É o
desapego vivido por quem escolhe estilos de vida sóbrios e essenciais, por
quem, partilhando as suas riquezas, consegue assim experimentar a comunhão
fraterna com os outros. Isto é fundamental, para seguir Jesus Cristo e ser
verdadeiramente cristão.
A redescoberta da
fraternidade na economia
As graves crises financeiras e econômicas dos nossos
dias – que têm a sua origem no progressivo afastamento do homem de Deus e do
próximo, com a ambição desmedida de bens materiais, por um lado, e o
empobrecimento das relações interpessoais e comunitárias, por outro – impeliram
muitas pessoas a buscar o bem-estar, a felicidade e a segurança no consumo e no
lucro fora de toda a lógica duma economia saudável. Já, em 1979, o Papa João
Paulo II alertava para a existência de «um real e perceptível perigo de que,
enquanto progride enormemente o domínio do homem sobre o mundo das coisas, ele
perca os fios essenciais deste seu domínio e, de diversas maneiras, submeta a
elas a sua humanidade, e ele próprio se torne objeto de multiforme manipulação,
se bem que muitas vezes não diretamente perceptível; manipulação através de
toda a organização da vida comunitária, mediante o sistema de produção e por
meio de pressões dos meios de comunicação social».[14]
As sucessivas crises econômicas devem levar a
repensar adequadamente os modelos de desenvolvimento econômico e a mudar os
estilos de vida. A crise atual, com pesadas consequências na vida das pessoas,
pode ser também uma ocasião propícia para recuperar as virtudes da prudência,
temperança, justiça e fortaleza. Elas podem ajudar-nos a superar os momentos
difíceis e a redescobrir os laços fraternos que nos unem uns aos outros, com a
confiança profunda de que o homem tem necessidade e é capaz de algo mais do que
a maximização do próprio lucro individual. As referidas virtudes são
necessárias, sobretudo para construir e manter uma sociedade à medida da dignidade
humana.
A fraternidade
extingue a guerra
7. Ao longo do ano que termina, muitos irmãos e
irmãs nossos continuaram a viver a experiência dilacerante da guerra, que
constitui uma grave e profunda ferida infligida à fraternidade...
Por este motivo, desejo dirigir um forte apelo a
quantos semeiam violência e morte, com as armas: naquele que hoje considerais
apenas um inimigo a abater, redescobri o vosso irmão e detende a vossa mão!
Renunciai à via das armas e ide ao encontro do outro com o diálogo, o perdão e
a reconciliação para reconstruir a justiça, a confiança e esperança ao vosso
redor!
Por isso, faço meu o apelo lançado pelos meus
Predecessores a favor da não-proliferação das armas e do desarmamento por parte
de todos, a começar pelo desarmamento nuclear e químico...
É preciso uma conversão do coração que permita a
cada um reconhecer no outro um irmão do qual cuidar e com o qual trabalhar
para, juntos, construírem uma vida em plenitude para todos. Este é o espírito
que anima muitas das iniciativas da sociedade civil, incluindo as organizações
religiosas, a favor da paz.
A corrupção e o
crime organizado contrastam a fraternidade
A fraternidade gera paz social, porque cria um
equilíbrio entre liberdade e justiça, entre responsabilidade pessoal e
solidariedade, entre bem dos indivíduos e bem comum. Uma comunidade política
deve, portanto, agir de forma transparente e responsável para favorecer tudo
isto. Os cidadãos devem sentir-se representados pelos poderes públicos, no
respeito da sua liberdade. Em vez disso, muitas vezes, entre cidadão e
instituições, interpõem-se interesses partidários que deformam essa relação,
favorecendo a criação dum clima perene de conflito.
Um autêntico espírito de fraternidade vence o
egoísmo individual, que contrasta a possibilidade das pessoas viverem em
liberdade e harmonia entre si. ...Penso no drama dilacerante da droga com a
qual se lucra desafiando leis morais e civis, na devastação dos recursos
naturais e na poluição em curso, na tragédia da exploração do trabalho; penso
nos tráficos ilícitos de dinheiro como também na especulação financeira que,
muitas vezes, assume caracteres predadores e nocivos para inteiros sistemas
econômicos e sociais, lançando na pobreza milhões de homens e mulheres; penso na
prostituição que diariamente ceifa vítimas inocentes, sobretudo entre os mais
jovens, roubando-lhes o futuro; penso no abomínio do tráfico de seres humanos,
nos crimes e abusos contra menores, na escravidão que ainda espalha o seu
horror em muitas partes do mundo, na tragédia frequentemente ignorada dos
emigrantes sobre quem se especula indignamente na ilegalidade... No contexto
alargado da sociabilidade humana, considerando o delito e a pena, penso também
nas condições desumanas de muitos estabelecimentos prisionais, onde
frequentemente o preso acaba reduzido a um estado sub-humano, violado na sua
dignidade de homem e sufocado também em toda a vontade e expressão de resgate.
A Igreja faz muito em todas estas áreas, a maior parte das vezes sem rumor.
Exorto e encorajo a fazer ainda mais, na esperança de que tais ações
desencadeadas por tantos homens e mulheres corajosos possam cada vez mais ser
sustentadas, leal e honestamente, também pelos poderes civis.
A fraternidade ajuda
a guardar e cultivar a natureza
A família humana recebeu do Criador, um dom em
comum: a natureza. ... Em suma, a natureza está à nossa disposição, mas somos
chamados a administrá-la responsavelmente. Em vez disso, muitas vezes
deixamo-nos guiar pela ganância, pela soberba de dominar, possuir, manipular,
desfrutar; não guardamos a natureza, não a respeitamos, nem a consideramos como
um dom gratuito de que devemos cuidar e colocar ao serviço dos irmãos,
incluindo as gerações futuras.
...Por isso, é necessário encontrar o modo para que
todos possam beneficiar dos frutos da terra, não só para evitar que se alargue
o fosso entre aqueles que têm mais e os que devem contentar-se com as migalhas,
mas também e, sobretudo por uma exigência de justiça e equidade e de respeito
por cada ser humano.
Conclusão
10. Há necessidade que a fraternidade seja descoberta,
amada, experimentada, anunciada e testemunhada; mas só o amor dado por Deus é
que nos permite acolher e viver plenamente a fraternidade.
O necessário realismo da política e da economia não
pode reduzir-se a um tecnicismo sem ideal, que ignora a dimensão transcendente
do homem. Quando falta esta abertura a Deus, toda a atividade humana se torna
mais pobre, e as pessoas são reduzidas a objeto passível de exploração. Somente
se a política e a economia aceitarem mover-se no amplo espaço assegurado por
esta abertura Àquele que ama todo o homem e mulher, é que conseguirão
estruturar-se com base num verdadeiro espírito de caridade fraterna e poderão
ser instrumento eficaz de desenvolvimento humano integral e de paz.
Nós, cristãos, acreditamos que, na Igreja, somos
membros uns dos outros e todos mutuamente necessários, porque a cada um de nós
foi dada uma graça, segundo a medida do dom de Cristo, para utilidade comum
(cf. Ef 4, 7.25; 1 Cor 12, 7). Cristo veio ao mundo para nos trazer a graça
divina, isto é, a possibilidade de participar na sua vida. Isto implica tecer
um relacionamento fraterno, caracterizado pela reciprocidade, o perdão, o dom
total de si mesmo, segundo a grandeza e a profundidade do amor de Deus,
oferecido à humanidade por Aquele que, crucificado e ressuscitado, atrai todos
a Si: «Dou-vos um novo mandamento: que vos ameis uns aos outros; que vos ameis
uns aos outros assim como Eu vos amei... O serviço é a alma da fraternidade que
edifica a paz.
Que Maria, a Mãe de Jesus, nos ajude a compreender e
a viver todos os dias a fraternidade que jorra do coração do seu Filho, para
levar a paz a todo o homem que vive nesta nossa amada terra.
Vaticano, 8 de Dezembro de 2013.