SENTIDO LITÚRGICO DO DIA DE
FINADOS
“Enxugará
as lágrimas de seus olhos e a morte já não existirá. Não haverá mais luto, nem
pranto, nem dor, porque tudo isso já passou”· (Ap 21,4).
Por que então a liturgia cristã interessou-se pelos mortos também
fora da missa? Por que a Igreja dedicou um dia exclusivo à lembrança dos
finados? Você acha válido rezar pelos falecidos? Como você se prepara para
viver o momento de sua morte? Por que o ser humano preocupa-se tanto em marcar
com sinais exteriores a morte de pessoas queridas?
1. História da Celebração
O Cristianismo nasceu embebido pela vida, morte e ressurreição de
Jesus, o Cristo Senhor. O ápice da vida do filho de Deus foi sentir em sua
carne a frieza da morte. Sem dúvida, ao doar amorosamente sua vida na cruz,
Jesus viveu em sua própria carne a experiência da morte. Ele morreu realmente.
Mas a Graça de Deus, confirmando a mensagem e o testemunho de vida de Jesus, o
ressuscitou dos mortos e garantiu assim, a todos os fiéis que nele depositam
suas esperanças, a possibilidade de transcender também a fase finita da vida e
alcançar a plenitude da personalidade e potencialidades humanas, na realidade
de fé que chamamos de Vida Eterna.
Desde muito cedo o Cristianismo celebrou os fiéis que morreram
unidos à sua comunidade de fé. Os mártires eram venerados nos locais de
seu martírio e as primeiras construções genuinamente cristãs foram monumentos
em homenagem a estes heróis da fé. Além disso, as perseguições imperiais
obrigavam os cristãos a refugiarem em catacumbas para celebração dos exercícios
litúrgicos. E as catacumbas nada mais eram que os primeiros cemitérios
cristãos.
Os mais antigos sacramentários romanos atestam o uso de missas
pelos defuntos. O costume de rezar pelos mortos em celebrações específicas
parece ter surgido pelo fato de que não era possível realizar exéquias dos
cristãos no momento da morte, tamanho o medo da perseguição pagã. Assim, dias
depois do fato, geralmente uma semana ou mesmo trinta dias, a comunidade
reunia-se para as devidas homenagens ao falecido e aos familiares.
Nos mosteiros irlandeses, no século VII, já encontramos rolos com
os nomes de monges falecidos, que circulavam entre as comunidades, numa rústica
forma de comunicação orante entre os religiosos. Para estes falecidos era sempre
dedicado algum ofício religioso solene.
Nos séculos IX e X já é possível encontrar o costume de anotar
nomes de falecidos para oferecimento de missas, mas ainda mantém-se a
vinculação com o nome de vivos, que faziam suas ofertas generosas para a
comunidade cristã.
Mas foi em Cluny, o renomado Mosteiro francês, que começou a
surgir uma explicação da oração pelos mortos. À Igreja Peregrina nos caminhos
da história unia-se a Igreja Triunfante (os santos e santas) e à igreja
Padecente (aqueles que mesmo mortos ainda não tinham alcançado a plenitude da
Ressurreição). Esta união entre santos e pecadores, chamada de comunhão dos
santos, já fazia parte da tradição cristã e foi teologicamente elaborada pelo
mestre da escolástica, Santo Tomás de Aquino, nos seguintes termos:
“Assim como no corpo natural
a atividade de um membro se subordina ao bem estar de todo o corpo, também no
corpo espiritual que é a Igreja, acontece o mesmo. E porque todos os fiéis são
um só corpo, o bem de um comunica-se ao outro”.
Tudo indica que foi no século X que, a partir do mosteiro do
Cluny, instituiu-se a comemoração dos mortos para o dia 2 de novembro, em
íntimo contato com a festa de todos os santos. A Festa dos Mortos será
rapidamente celebrada em todo mundo cristão. Trata-se hoje de um dos feriados
mais universais do nosso planeta.
2.
Sentido da celebração de Finados
No dia de Finados, não festejamos a morte. Seria uma ignorância e
uma contradição. Celebramos sim, nossa fé na ressurreição e a esperança do
encontro na morada que Jesus nos preparou, no seio amoroso de Deus. A
comemoração dos fiéis defuntos é uma oportunidade ímpar para agradecer a Deus
pela existência daqueles que nos precederam e, de certa forma, participaram da
construção de nossa própria história.
O gesto mais comum em Finados é a visita ao cemitério, a
participação na Eucaristia e as devoções próprias de cada cultura, como acender
velas, oferecer flores e enfeitar os túmulos dos falecidos. Em todos estes
gestos antropologicamente enraizados no ser humano transparece a consciência
que temos de nossa finitude e da necessidade absoluta de apego ao Divino para a
manutenção da esperança em glorificação da existência.
Acendemos velas para lembrar que essa luz segue iluminando-nos, em
nossos corações. Veneramos seus exemplos e imitamos sua fé (Hb 13,7).
Enfeitamos as sepulturas com flores, símbolo da ressurreição. Nossos mortos são
plantados como sementes, regadas com nossas lágrimas, e florescem ressuscitados
no jardim do Senhor.
Além disso, ao recordar a vida de um ente querido, nós próprios
deparamo-nos com a realidade da morte em nossa vida e pesamos nossos
comportamentos pessoais e sociais. A presença da limitação e fraqueza da vida
permite-nos ser mais humildes na consideração da validade de nossa vida. Não há
como ficar insensível diante da finitude da carne humana!
3. Sentido Teológico de Finados: a
certeza da Ressurreição
Nossa fé cristã é a fé no Ressuscitado. Esta certeza de fé elimina
de nós toda e qualquer idéia de renascimento ou reencarnação. Somos únicos
desde a concepção, durante a vida e após a morte. A razão de nossa fé na
Ressurreição é a experiência radical de Jesus. Ele foi Ressuscitado pelo Pai
(At 2, 22s), numa atitude amorosa que confirmou toda a obra realizada pelo
homem de Nazaré em favor dos mais oprimidos e marginalizados.
O fundamento teológico para a nossa compreensão de fé em torno da
vida que começa na morte está na Ressurreição de Jesus Cristo. É São Paulo que
diz: ‘Se Cristo não tivesse ressuscitado, vã seria a nossa fé, e nós ainda
estaríamos em nossos pecados’ (1Cor 15, 17).
Nós cremos na ressurreição como um momento de transcedência de
nossa realidade finita para uma realidade infinita ao lado de Deus. Na
Ressurreição nossa vida é transformada. Assim como acontece com a semente que,
ao ser lançada na terra, morre e desta morte nasce a nova vida, cremos que
também nós vamos ressuscitar e assumir uma nova vida. Nós cremos que a nossa
vida terrestre é uma preparação para a verdadeira e definitiva vida. Temos uma
única oportunidade de viver no mundo e nos preparar para a eternidade.
O próprio Jesus viveu apenas uma única vida humana, iniciada no
momento de sua concepção no seio virginal de Maria e consumada na cruz, quando
exausto e sem forças, Jesus entrega sua vida nas mãos do Pai (Jo 19,30). Mas,
como já dissemos, Deus não permitiu ao Cristo permanecer preso nas cadeias da
morte, mas o fez receber vida nova, ressuscitando-o e reafirmando assim o valor
da vida justa sobre os poderes nefastos de uma sociedade marcada pela cultura
de morte.
Mas, Ele ressuscitou. O corpo físico de Jesus foi transformado em
um corpo glorioso, que não ocupa mais espaço, não envelhece mais com o tempo e
não morre mais. Este Cristo vivo e ressuscitado está na Eucaristia, está nos
sacrários de nossas igrejas e está também na comunidade cristã, já que Ele
disse: ‘Onde dois ou mais estiverem reunidos em meu nome, eu estarei presente’
(Mt 18,20) ou então: ‘Eis que eu estou convosco todos os dias até a consumação
dos séculos’ (Mt 28, 20). Nada pode nos separar do amor de Cristo...
4. Celebrando o dia de Finados
As celebrações litúrgicas do dia de hoje são comedidas e cercadas
de um clima de saudade e tristeza. São comuns as missas rezadas nos cemitérios,
onde um ou outro grupo pastoral pode estar presente para acolher as pessoas
mais sensibilizadas.
Nas igrejas e capelas reze-se pelos fiéis defuntos que
participaram da história da comunidade, mas evite-se enumerar nomes ou dar
destaques a algum falecido. Mantenha a sobriedade dos cantos e respeite-se o
silêncio com marca da celebração.
Entretanto, evite-se o clima de luto nas celebrações. Vale a pena
recordar que a celebração de Finados marca a esperança cristã na Ressurreição e
deve ser iluminada por aquela alegria que marca a fé cristã.
Para
os celebrantes, atenção nas homilias. O Mistério da Ressurreição deve ser o
centro da reflexão, aproveitando para refletir bem as palavras do Evangelho e
esclarecendo o real sentido da morte para o cristão, numa catequese que
contemple toda a eliminação de idéias estranhas tão espalhadas pela mentalidade
do povo católico brasileiro.
padre Evaldo César de Souza,
C.Ss.R.